domingo, 3 de março de 2013

Os três contextos da violência de gênero: doméstico, familiar ou relação íntima de afeto

 
Além de a violência ter por base uma questão de gênero, há ainda outra exigência, para que a Lei Maria da Penha tenha incidência: o contexto doméstico ou familiar da ação ou a existência de uma relação íntima de afeto (art. 5º).
 
A preocupação com a violência contra a mulher dentro do lar cresce a cada pesquisa realizada. No ano de 2004, Ibope/Instituto Galvão constatou que 19% dos entrevistados apontaram a violência contra a mulher como o tema mais preocupante para a mulher brasileira. Antes da aprovação da Lei Maria da Penha, mas ainda no ano de 2006 (ano que a Lei Maria da Penha entrou em vigência), pesquisa realizada pelo referido instituto comprovou a elevação do percentual, passando para 24%. Após a vigência da Lei Maria da Penha, o percentual chegou a 56% (Pesquisa Ibope/Avon, 2009), ou seja, a preocupação com a violência contra a mulher é uma realidade sensível e crescente.
 
Além da maior vulnerabilidade da mulher no lar, dada a sua maior exposição ao agressor e a distância das vistas do público (invisibilidade do problema), é comum que o agressor prevaleça-se desse contexto de convivência para manter coagida a mulher, desencorajando-a a noticiar a violência sofrida aos familiares, amigos ou às autoridades. Essa situação fataliza o quadro de violência e a mulher, sentindo-se sem meios para interromper a relação, toma-o por inevitável. Submetida a um limite sempre cruel e não raro fatal, a mulher acaba aceitando o papel de vítima de violência doméstica.
 
O agressor conhece a condição privilegiada decorrente de uma relação de convívio, intimidade e privacidade que mantém ou tenha mantido com a vítima, prevalecendo-se dela para perpetrar suas atitudes violentas. De fato, seguro do controle do “seu” território, dificilmente exposto a testemunhas o indivíduo violento aumenta seu potencial ofensivo, adquirindo a conformação de um assassino em potencial. Por essas especificidades, não se pode tratar indistintamente um delito que tenha sido praticado por um desconhecido e outro perpetrado por alguém de convivência próxima.
 
Não é por acaso que a violência contra a mulher ocorre predominantemente no lar, notadamente em razão de agressões praticadas por maridos e companheiros, o que aumenta muito o fator de risco, pois o agressor tem uma enorme proximidade com a vítima. Aliás, meios que exigem contato direto, como objetos cortantes e penetrantes são mais comuns quando se trata de violência contra a mulher (15,1% para homens, 24,6% para mulheres), contundentes (5% para homens, 7,7% para mulheres), sufocação (0,9% para homens, 6,1% para mulheres) etc. (Mapa da Violência 2012).
 
O art. 5º da Lei Maria da Penha especifica as três situações de incidência de suas normas: no âmbito da unidade doméstica (inciso I), no âmbito da família (inciso II) e em decorrência de uma relação íntima de afeto (inciso III). Todas serão vistas a seguir:
 
1. No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas – art. 5º, I
 
Três destaques devem ser elaborados em relação ao dispositivo:
 
(a) unidade doméstica: de acordo com a lei, a unidade doméstica representa o espaço de convívio permanente de pessoas, não abrangendo, assim, por exemplo, a mulher que foi fazer uma visita (amiga de um dos familiares) ou fazer entrega domiciliar de algum produto;
 
(b) não se exige o vínculo familiar (tal exigência aparece no inciso II do art. 5º da Lei);
 
(c) abarca as pessoas esporadicamente agregadas: incluem-se, assim, as mulheres tuteladas, curateladas, sobrinhas, enteadas e irmãs unilaterais.
 
2. No âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa – art. 5º, II
 
Considera-se violência familiar a que seja praticada por um ou mais membros de uma família, assim considerada a comunidade formada por indivíduos que “são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” (inc. II).
 
A Lei Maria da Penha dedica especial proteção à mulher vítima de violência no ambiente doméstico e familiar. Assim, para que haja incidência da Lei Maria da Penha e sujeição do agressor a todas as implicações que decorrem da Lei Maria da Penha, é necessário que a mulher pertença à família, ou seja, ostente estreita ligação com os demais membros da unidade doméstica. Tal assertiva não exige que haja apenas ligação por laços naturais, sendo possível, nos termos do art. 5°, inc. I, que seja por afinidade ou vontade expressa. A Lei Maria da Penha exige, portanto, ligação entre a mulher ofendida e o agressor, razão pela qual se a mulher agredida não pertencer à unidade doméstica (ex. representante comercial agredida enquanto fornecia um produto à família) não há que se falar em aplicação da Lei Maria da Penha. Da mesma forma, se a esposa ou companheira for agredida na rua ou em um estabelecimento comercial, por exemplo, haverá incidência da Lei Maria da Penha em razão da ligação entre o agressor e a mulher vítima.
 
A família pode ser formada por vínculos de parentesco natural (pai, mãe, filha etc.) ou civil (marido, sogra, cunhada etc.), por afinidade (primo, cunhado, tio) ou de afetividade (amigos que dividem o mesmo apartamento).
 
3. Em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação – art. 5º, III
 
Em decisão emblemática, o STJ, no ano de 2008, entendeu, no julgamento do Conflito de Competência 91.980-MG, que a Lei Maria da Penha não deveria ser aplicada em casos envolvendo ex-namorados (no mesmo sentido: CC 95057/MG). Por maioria de voto, os Ministros da Terceira Seção entenderam que:
 
                   1. Tratando-se de relação entre ex-namorados – vítima e agressor são ex-namorados –, tal não tem enquadramento no inciso III do art. 5º da Lei nº 11.340, de 2006. É que o relacionamento, no caso, ficou apenas na fase de namoro, simples namoro, que, sabe-se, é fugaz muitas das vezes.
 
                            2. Em casos dessa ordem, a melhor das interpretações é a estrita, de modo que a curiosidade despertada pela lei nova não a conduza a ser dissecada a ponto de vir a sucumbir ou a esvair-se. Não foi para isso que se fez a Lei nº 11.340! 
 
Mais recentemente, o STJ reformou o seu entendimento para aplicar a Lei Maria da Penha em situação de namoro (HC 181217/RS, julgado em 2011 e CC 103813/MG, do ano de 2009). Tal questão, até janeiro de 2013, não foi objeto de análise pelo STF.
 
Correta a posição do STJ, pois havendo uma relação de namorados, ex-namorados, ainda que sem convivência, deve ser aplicada a Lei Maria da Penha. O mesmo se dá para a relação entre amantes. Nessas situações, o que a Lei Maria da Penha exige é uma relação íntima de afeto (art. 5º, III).
 
Da análise dos três contextos da violência de gênero fácil perceber que não foram contemplados inúmeros outros em que a violência de gênero pode se manifestar (trabalho escola ou âmbito institucional, praticada nas instituições prestadoras de serviços públicos, como hospitais, postos de saúde, delegacias, prisões). Essa é uma das mais importantes críticas que organismos nacionais e internacionais de proteção à mulher fazem à Lei brasileira, uma vez que a proteção conferida pela Convenção de Belém do Pará é mais abrangente, ou seja, protege a mulher de qualquer tipo de violência.[1] Não obstante, a Lei Maria da Penha é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher como uma das três mais avançadas no mundo (ao lado da lei que vige na Espanha e da que vige na Mongólia), dentre 90 legislações sobre o tema.[2]
1. A Convenção de Belém do Pará define o que é violência contra a mulher e o âmbito de ocorrência no artigo 2, sendo taxativa ao dispor que a violência contra a mulher pode ocorrer no âmbito da família ou da unidade doméstica; na comunidade; e, em decorrência de atos dos agentes do Estado, bem como em razão da tolerância dos mesmos agentes. 2. Relatório da Unifem “Progresso das Mulheres no mundo – 2008/2009”. Íntegra do documento disponível em: http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000395.pdf O texto também pode ser encontrado no site: www.atualidadesdodireito.com.br.
Artigo publicado por
ALICE BIANCHINI Doutora em Direito Penal (PUC-SP). Mestre em Direito (UFSC). Diretora do Instituto LivroeNet e do Portal www.atualidadesdodireito.com.br. Coordenadora do Curso de Especialização em Ciências penais da Anhanguera-Uniderp/LFG. Presidenta do IPAN – Instituto Panamericano de Política Criminal. Possui diversos livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.
25/02/2013 09h56
Fonte:http://www.fatonotorio.com.br/artigos
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