Num dia o motorista aceita fazer o
exame e é flagrado com 0,34 dg/L: é automaticamente, presumidamente,
criminoso. Noutro dia ele recusa o exame e vai ser julgado pelos sinais.
Aqui o subjetivismo prepondera.
Com 46 mil mortes no trânsito projetadas para 2012 (pelo Instituto
Avante Brasil) não há dúvida que temos que reagir contra essa tragédia
nacional. Mas não podemos esquecer (tal como enfatizado no novo livro
que estamos escrevendo) que o Brasil encontra-se regido
constitucionalmente por um Estado Democrático de Direito, que possui
regras limitadoras do tendencialmente autoritário poder punitivo
estatal, que também pode ser criminoso (Zaffaroni, 2012a, p. 38), tal
como foi o direito penal nazista de 1933-1945.
Por meio da Resolução 432/13, o Contran regulamentou, em 29.01.13, a
Lei 12.760/12, de 21.12.12 (conhecida como nova lei seca). Com a adoção
(não absoluta) da “tolerância zero” de álcool no sangue, estamos diante
de uma das legislações mais duras do planeta, seja na parte
administrativa, seja na parte criminal (que prevê prisão de 6 meses a 3
anos).
Para o efeito de se distinguir o que é infração administrativa (art.
165) e o que é crime (art. 306), temos que começar enfocando duas
situações bem diferentes: (a) motorista que se submeteu a algum exame
pericial (exame de sangue ou teste de etilômetro) e (b) motorista que se
submeteu a exames laboratoriais (caso das drogas) ou que se recusou a
fazer qualquer tipo de exame (diga-se de passagem, é direito
constitucional não se submeter a nenhum exame corporal, que demande uma
atividade positiva do condutor: ninguém é obrigado a fazer prova contra
si mesmo - nemo tenetur se detegere).
Desde logo, considerando a forma equivocada, autoritária, automática e
midiática que estão interpretando a nova lei seca, não há nenhuma dúvida
de que os motoristas tenderão a não fazer qualquer tipo de exame
pericial, porque, com isso, mesmo nas situações em que está praticando
uma mera infração administrativa, vai correr altíssimo risco de ser
enquadrado (aberrantemente) como criminoso.
Motorista periciado (exame de sangue ou etilômetro)
Quando o motorista se submete ao exame de sangue ou ao teste do
etilômetro, o poder punitivo estatal, aliado à acrítica propaganda
midiática, está (equivocadamente) afirmando que continua em vigor o
perigo abstrato presumido (ou puro), fundado no critério meramente
quantitativo que, na nossa opinião, perdeu a relevância que tinha antes
da lei de 2012. Vejamos o que diz a Res. 432/23:
DA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA
Art. 6º A infração prevista no art. 165 do CTB será caracterizada por:
I - exame de sangue que apresente qualquer concentração de álcool por litro de sangue;
II - teste de etilômetro com medição realizada igual ou superior a 0,05 miligrama de álcool por litro de ar alveolar expirado (0,05 mg/L), descontado o erro máximo admissível nos termos da "Tabela de Valores Referenciais para Etilômetro" constante no Anexo I;
III - sinais de alteração da capacidade psicomotora obtidos na forma do art. 5º.
Parágrafo único. Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas previstas no art. 165 do CTB ao condutor que recusar a se submeter a qualquer um dos procedimentos previstos no art. 3º, sem prejuízo da incidência do crime previsto no art. 306 do CTB caso o condutor apresente os sinais de alteração da capacidade psicomotora.
DO CRIME
Art. 7º O crime previsto no art. 306 do CTB será caracterizado por qualquer um dos procedimentos abaixo:
I - exame de sangue que apresente resultado igual ou superior a 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue (6 dg/L);
II - teste de etilômetro com medição realizada igual ou superior a 0,34 miligrama de álcool por litro de ar alveolar expirado (0,34 mg/L), descontado o erro máximo admissível nos termos da "Tabela de Valores Referenciais para Etilômetro" constante no Anexo I;
III - exames realizados por laboratórios especializados, indicados pelo órgão ou entidade de trânsito competente ou pela Polícia Judiciária, em caso de consumo de outras substâncias psicoativas que determinem dependência;
IV - sinais de alteração da capacidade psicomotora obtido na forma do art. 5º.
§ 1º A ocorrência do crime de que trata o caput não elide a aplicação do disposto no art. 165 do CTB.
§ 2º Configurado o crime de que trata este artigo, o condutor e testemunhas, se houver, serão encaminhados à Polícia Judiciária, devendo ser acompanhados dos elementos probatórios.
O crime se configuraria, sempre, conforme a Res. 432/13, com 6
decigramas ou mais de álcool por litro de sangue ( 6 dg/L) ou com 0,34
miligramas ou mais de álcool por litro de ar alveolar expelido (0,34
mg/L).
Trata-se de uma interpretação numérica ou automática da lei penal, que é
cientificamente aberrante porque fundada em critérios estatísticos
quantitativos, configuradores de verdadeiros leitos de Procusto,
derivados de presunções genéricas que desconsideram a individualidade
das pessoas (interpretação, portanto, cientificamente aberrante e
antropologicamente escatológica).
Cuida-se, ademais, de interpretação nitidamente inconstitucional,
porque fundada em presunção fática contra o réu (presunção automática da
alteração da capacidade psicomotora), que viola flagrantemente o
princípio constitucional e internacional da presunção de inocência.
É, por outro lado, penalmente autoritária porque, com a citada
quantidade de álcool no sangue, já se presume a alteração na capacidade
psicomotora do agente assim como a condução sob a influência do álcool
(que são requisitos típicos que não podem ser presumidos). Tudo que está
contemplado objetivamente no texto legal deve ser provado (não
presumido).
É, ainda, dogmaticamente tirânica, porque ignora a dimensão material da
tipicidade, defendida pela concepção constitucional do delito (veja
L.F. Gomes, Fundamentos e limites do direito penal) a partir da teoria
da imputação objetiva de Roxin e da teoria contencionista de Zaffaroni.
Por último, é epistemologicamente incorreta, na medida em que o perigo
abstrato puro (ou presumido) se contenta com o mero desvalor da ação (da
conduta) presumidamente ofensiva, tal como foi desenhado no direito
penal nazista da Escola de Kiel sobretudo por Dahm e Schaffestein,
prescindindo-se tanto da comprovação da perigosidade real da conduta
como do desvalor do resultado.
De acordo com nossa opinião, a interpretação fundada em automatismos
generalistas é inadequada e absurda, porque o legislador de 2012
abandonou a técnica do perigo abstrato puro ou presumido, que tinha sido
adotada na redação do art. 306 em 2008 (dirigir com 6 decigramas ou
mais). Importa agora analisar no delito de embriaguez ao volante em cada
caso concreto, cada pessoa singular, seu sexo, altura, habitualidade da
alcoolemia etc.
Cientificamente se sabe que o álcool afeta as pessoas de maneira
distinta. Cada uma tem sua singularidade e reage de forma diferente
frente ao álcool. É por isso que as generalizações nessa área se
apresentam “procustamente” aberrantes. Por exemplo: “A bebida afeta o
sexo feminino mais rapidamente do que o masculino. O consumo de uma dose
por um homem de 70kg produz uma concentração de 0,2 gramas de álcool
por litro de sangue (g/l), em média. Numa mulher de 60kg, a mesma dose
resulta em 0,3 g/l. Não que todas sejam fracas para beber. É que,
normalmente, a mulher tem menos água no corpo (o etanol se dilui em
água) e o fígado feminino demora mais para metabolizar o álcool. Elas,
ademais, [com o mesmo peso] têm percentual de gordura maior que os
homens” (O Globo de 14.08.11, p. 40).
Motoristas que não fizeram exame de sangue ou etilômetro
Considerando-se que ninguém é obrigado a fazer o exame de sangue ou
mesmo o teste do etilômetro (por força do princípio nemo tenetur se
detegere), a lei nova possibilitou provar a embriaguez por sinais
indicativos de alteração da capacidade psicomotora. Diz a Res. 432/13:
DOS SINAIS DE ALTERAÇÃO DA CAPACIDADE PSICOMOTORA
Art. 5º Os sinais de alteração da capacidade psicomotora poderão ser verificados por:
I - exame clínico com laudo conclusivo e firmado por médico perito; ou
II - constatação, pelo agente da Autoridade de Trânsito, dos sinais de alteração da capacidade psicomotora nos termos do Anexo II.
§ 1º Para confirmação da alteração da capacidade psicomotora pelo agente da Autoridade de Trânsito, deverá ser considerado não somente um sinal, mas um conjunto de sinais que comprovem a situação do condutor.
§ 2º Os sinais de alteração da capacidade psicomotora de que trata o inciso II deverão ser descritos no auto de infração ou em termo específico que contenha as informações mínimas indicadas no Anexo II, o qual deverá acompanhar o auto de infração.
Quando ingressamos nesse terreno dos “sinais indicadores da alteração
psicomotora” o subjetivismo é quase que absoluto, cabendo considerar
cada pessoa, cada caso. Aquele automatismo que se pretende contra o
motorista que fez exame de sangue (ou etilômetro) desaparece. Sai a
matemática e entra o singularismo de cada caso.
O tratamento jurídico de um e outro motorista é totalmente distinto,
desigual. Trata-se do mesmo motorista e da mesma causa: a embriaguez.
Num dia o motorista aceita fazer o exame e é flagrado com 0,34 dg/L: é
automaticamente, presumidamente, criminoso. Noutro dia ele recusa o
exame e vai ser julgado pelos sinais. Aqui o subjetivismo prepondera.
Pode até estar com 0,40 ou 0,50 ou mais de álcool no sangue e ser tido
como infrator administrativo.
A violação ao princípio da igualdade (isonomia) está mais do que
evidenciada. Motorista periciado: automatismos, presunções, regras
quantitativas abstratas, generalizações, estatísticas etc. Motorista não
periciado: cada caso é um caso, tudo depende dos sinais indicativos de
cada pessoa, o que significa uma pluralidade de valorações nebulosas,
subjetivas (e, muitas vezes, até mesmo disparatadas).
Para que não ocorra esse flagrante tratamento diferenciado, inseguro,
incongruente e nebuloso, só resta um caminho: respeitar a lei nova em
sua literalidade (art. 306). Cumpra-se o que está na nova lei. Vamos
respeitar a legalidade. No art. 306 (caput) não existe nenhuma
referência quantitativa. Logo, para efeitos penais, todos os motoristas
devem ser tratados igualmente (com o mesmo critério). Não pode haver
variação de critério: para alguns motoristas, critério quantitativo;
para outros, critério subjetivo, valorativo.
A quantificação de álcool no sangue (em relação aos motoristas que
fizeram o exame ou o teste) é apenas um dos sinais indicativos da
embriaguez. Mas uma coisa é provar a embriaguez e outra distinta é o
grau de alteração da capacidade psicomotora do agente assim como a forma
como ele conduzia o veículo, sob a influência do álcool (ou outra
substância psicoativa). O legislador de 2012 abandonou o critério do
perigo abstrato puro (ou presumido), na medida em que o caput do art.
306 não apresenta nenhum dado numérico. Rompeu-se com o automatismo.
O que está previsto no novo art. 306 é o perigo abstrato de
perigosidade real, que exige a comprovação efetiva da alteração da
capacidade psicomotora do agente assim como uma condução anormal
(zigue-zague, batida em outro veículo etc.), que é da essência do crime
de dirigir sob a influência de substância psicoativa.
Fora disso, estamos diante de uma infração administrativa. O motorista
não escapa, de forma alguma (vai responder por algo). Mas esse critério é
muito mais justo, porque trata todos os motoristas igualmente. É o
critério do caso concreto, competindo ao juiz a palavra final (sobre o
enquadramento do fato como infração administrativa ou como infração
penal).
Os operadores jurídicos, destacando-se os advogados, não podem se
conformar com a interpretação automática e midiática do novo art. 306.
Se o legislador mudou de critério (modificando a redação da lei), não se
pode interpretar o novo com os mesmos critérios procustianos da lei
antiga. O poder punitivo estatal (com a propaganda midiática) está
ignorando a nova redação da lei. Para ele, mudou-se a lei para ficar
tudo como era antes dela. Muda-se a lei para ficar como era. Trata-se de
uma postura malandra do poder punitivo estatal e da criminologia
midiática (Zaffaroni: 2012a, p. 10 e ss.), que os intérpretes e
operadores jurídicos não podem aceitar
Fonte: JUS NAVEGANDI
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